sexta-feira, 18 de março de 2011

De médico e de louco

Poucas facas de dois gumes me parecem tão afiadas para o bem e para o mal quanto o acesso quase ilimitado das pessoas a qualquer tipo de informação.
Não preciso nem dizer o quanto acho sensacional que a informação possa fazer parte do patrimônio do maior número de seres possível: informação é poder, é capacidade de decidir melhor, minimizar erros desnecessários, tornar as pessoas mais iguais enfim, as vantagens são infinitas.
Por outro lado, tenho observado muito “a fala” das pessoas informadas e é impressionante a quantidade de rótulos apressados que se coloca em quem quer que seja com base no muito pouco ou quase nada que se sabe.
Tenho escutado pessoas afirmarem, sem a menor cerimônia, que fulano é autista. Filhos chamando os pais de bipolares. Qualquer um mais “colecionador” tem transtorno obsessivo compulsivo, que o colega ao lado é claramente um psicopata, enfim, a doença mental virou uma espécie de adjetivo tão normal quanto ser feio, bonito, alto ou gordo. Pessoas enxergam o interior umas das outras com a mesma facilidade com que enxergam a roupa que estão usando.
Não sei bem o que isso quer dizer, mas tenho ficado um tanto chocada, confesso. Mais ainda quando é a própria pessoa falando dela mesma, se diagnosticando e se conferindo essas espécies de “desculpas” para agirem como agem ou para encerrar qualquer questão: sou autista, o que se há de fazer? Deficit de atenção então virou a coisa mais corriqueira do mundo e serve para crianças e adultos com a maior naturalidade, e tome ritalina.
Essas as que me lembro assim mais imediatamente por mais citadas, mas o número de transtornos, compulsões etc. não tem fim.
Se a gente sabe que “de perto ninguém é normal” e que o conceito de “normalidade” já foi há muito extinto do rol das possibilidades humanas, por que é preciso dar nome e sobrenome a todos as diferenças que encontramos?
Quando ouço que alguém é autista, a imagem que se forma na minha cabeça é a da clássica criança se balançando, inteiramente alheia ao mundo e sem acesso possível, irritada e agressiva por qualquer rompimento com as rotinas e padrões que lhe são familiares, com grande dificuldade de entendimento de metáforas e sem a menor possibilidade de criar vínculos.
Sei também, que esta é a forma mais severa da doença e que hoje já se sabe que a maioria delas abrange todo um espectro, isto é, vão desde formas muito brandas quase imperceptíveis até as muito severas, sem que, contudo, deixem de ser a doença.
Em que pese o fato de, mesmo em sua forma mais suave, a doença poder atrapalhar muito a vida de uma pessoa e fazê-la lutar e sofrer mais do que seria preciso, não consigo ver nenhuma vantagem na banalização crescente da doença mental. Quem tem uma pessoa querida com uma grave doença mental sabe o quanto é doloroso e sofrido conviver e aceitar.
Lembro-me de um livro que li há algum tempo, chamado Síndromes Silenciosas, de John Ratey e Catherine Jonhson, em que os autores relatam inúmeros casos de formas brandas de diversas doenças que, por passarem despercebidas, levam as pessoas a viver muito mal e sem tratamento, já que não diagnosticadas. A pessoa fica sendo o “esquisitão”, acha que aquilo é sua “personalidade” e vai vivendo sem saber que poderia ser muito mais feliz e desenvolver muito mais seus reais potenciais caso fosse tratada.
Assim, um homem muito inteligente, que só se dedica ao trabalho, que é incapaz de estabelecer laços afetivos e é muito apegado às suas rotinas, é sim, uma forma branda de autismo que o faz perder muitas coisas boas da vida.
Uma dona de casa pessimista e mal humorada, não sabe, mas está deprimida de uma forma suave e carrega um fardo maior do que quem não está deprimido.
Aí entra o outro lado da faca. Ter a informação, saber que existem síndromes que se arrastam pela vida afora e que talvez só o fato de fazer exercícios já melhorasse muito, evitaria grande parte de sofrimentos desnecessários. Saber isso e não temer o diagnóstico, só faria bem.
Nas minhas pesquisas sobre o autismo, por exemplo, descobri que, em sua forma mais suave, nem se chama autismo e sim síndrome ou desordem de Asperger. Fiz essa pesquisa porque o rótulo de autista é o que mais tenho ouvido assim indistintamente. E tenho ficado tão impressionada que resolvi buscar alguma coisa para tentar compreender.
O problema é que as pessoas se referem umas às outras ou a si mesmas, como se não houvesse pesos e medidas. O peso da doença é sempre o mesmo para todos aqueles que são rotulados. Todos se acham ou médicos psiquiatras ou loucos, ou os dois ao mesmo tempo. Tornou-se quase impossível não ter uma doença mental. Tornou-se moderno e banal.
O que eu acho é que isso esconde uma total desqualificação e indiferença pelo sofrimento alheio, misturado com uma necessidade de ter bons motivos para justificar eventuais fracassos ou comportamentos inadequados, em um mundo onde ter sucesso significa ser perfeito, jovem, bonito, saber ganhar dinheiro e ter muitas coisas. E ainda, quem sabe, um reforço para a teoria de que relacionamentos não merecem mesmo ser muito aprofundados, pois no fundo todo mundo é desequilibrado e incapaz de nos proporcionar a tão almejada felicidade. Felicidade esta que ninguém sabe direito o que significa, mas que todo mundo intui  estar fora do alcance da nossa imperfeita humanidade.
Mais vale uma boa doença.

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