segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Mestre, meu mestre querido

Mestre, meu mestre querido,
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos.
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...
Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!
Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.
In Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Antologia Poética (Ulisseia Ed.)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Tentando falar de amor


O anel que tu me deste era vidro e se quebrou
O amor que eu te tinha era pouco e se acabou.
E o que exatamente nós amávamos, senão a possibilidade do amor?
Existe o amor ou querer amar é já o começo e o fim?
Quero você, quero a mim com você ou não quero você sem mim?
O amor nos afirma a todos como seres superiores e daí essa busca que ninguém sabe se quer?
Ou se instala à revelia e daí essa fuga que, camuflada, vira uma dor qualquer?
Amo? Não amo? Amei? Amarei? Que sei?
Sei que sonhei, mas com alguma coisa diferente que me escapa
Sonhei um sonho de quem dorme e sempre que tentei acordar senti-me acuada
Nunca estive acordada?
Na dúvida, durmo.
E dormindo,  posso sentir todo amor do mundo em qualquer hora e lugar
E dormindo, posso sonhar que vivi e o anel não era vidro e o amor não se acabou.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Enganos



Quantas vezes me enganei nessa vida? Perdi a conta.
Quantas vezes pensei estar fazendo o melhor para todos – pois que me lembre quase sempre pesei as consequências dos meus atos para os outros também e julguei justamente o contrário? Inúmeras.
E a vida e a observação foram me ensinando que NUNCA sabemos o que é melhor para outra ou outras pessoas. Por isso nunca acreditei em caridade unilateral. “Vou te dar uma casa porque isso vai resolver sua vida”. E ninguém perguntou ao interessado se era uma casa o que ele queria. Nunca acreditei em programas sociais de governos que se baseiam na auto-promoção e não têm nenhuma noção do que de fato a população deseja. Daí faz-se casas e o povo vende a casa. Ingratos. Nem sabem dar valor ao apartamento que demos para eles. Quem disse que queriam apartamentos? E naquele lugar? E daquele tamanho? Queriam emprego e dignidade para comprar o apartamento que bem entendessem, na hora que lhes fosse conveniente, perto dos vizinhos que escolhessem. Queriam autonomia e liberdade. 
Todo mundo odeia caridade. Aceitam-na por total falta de opção. É isso ou nada. Mas ninguém se engane que o “caridoso” seja amado e reconhecido. É, no máximo, tolerado.

Tendo isso em vista, me preocupo em nunca inferir a partir dos meus valores e convicções o que as pessoas querem. Nem minha filha. Pequena, eu ainda tinha o dever de julgar por ela nas questões básicas de segurança, higiene, estudos e valores fundamentais da vida. Quase adulta, terei que descobrir antes de “achar” o que é melhor para ela.

E foi assim que me enganei de novo. E feio. E doído. Meu alerta não funcionou quando imaginei que ninguém seria capaz de não querer amor, apoio, intimidade, confiança. E ainda se irritar com quem estava se imaginando pura generosidade e entrega. Levei mais um susto. Demorei para me dar conta, de novo, que quem queria aquilo era eu e não o outro.
Quanto tempo é preciso viver para parar de cometer os mesmos enganos?
Dessa vez, outra vez, penso: chega. Quem quiser alguma coisa me peça claramente. Parei de adivinhar. Se eu puder dar, o farei com a maior alegria, senão, paciência. Ninguém pode ter tudo.
Eu, o máximo que almejo nessa hora, é parar o recorrente e, portanto, parar a dor. E isso, graças a deus, só depende de mim.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O caminho de volta



Se você é o vento, e eu a folha pronta para cair,
me leva para longe,
me faz voar muito antes de virar mais uma
numa calçada cheia de folhas mortas e lixeiras prontas para as fazer sumir.
 
Me consola e me convence, de que essa morte é urgente e temporária
que, sem folha alguma, por mais que sofra, me reconheço e se tudo der certo me aceito
E me promete que estará comigo para me dar a mão enquanto o gelo me cobre e morro de frio,
e me iludo, imaginando das flores o renascer que, espero, não seja tardio.
 
E depois venha o verão, o calor, e eu, já segura, possa espalhar sóis e chuvas para lavar
Purificar, iluminar e preparar o novo outono em que o vento me levará por onde queira voar.
Todas as estações me prometem mudanças e novas descobertas.
Você, queira ou não, foi que me tornou desperta para o que em mim dormia e
De alguma forma, me fez ansiar por ventania.
 
Não quero mais o dar reflexivo. Dar-se a si mesmo é nada
E receber-se coisa nenhuma também!
Quero dar bitransitivo: alguma coisa, para alguém.

E não quero que você corra. Andemos calmamente.
Eu não vou na sua frente.
Não lhe dou nada que você não me tenha dado antes.

Andemos.
Procuremos alinhar sentimentos, troquemos frio ou calor quando preciso for.
Toquemo-nos de leve, degustemos nossas delícias, sintamos sabores que não conhecemos e, 
em toda essa andança, provemos da palavra confiança.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Não


Durmo o sono dos injustos
Sinto o cansaço dos que nada fazem
Acumulo em mim todo sentimento dos que não amam
Dilacera meu peito a dor dos que não lamentam nada
Celebro, sem pudor, a vida que não justifico
Morro, a cada dia, um pouco da morte que jamais viverei.