terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Chico Buarque de Holanda

Fui assistir “Chico”. Obviamente o show de Chico Buarque que não por acaso se chama “Chico”.
A minha leitura é que nele e no disco de mesmo nome, Chico Buarque é para os íntimos, para os que o chamam de Chico, por convivência real ou por tietagem escancarada. Aqueles que sabem todas as suas músicas, que acompanham de perto sua trajetória, e por que não dizer, o amam de paixão.
Quer dizer: uma legião sem fim de fãs. 

Como me encaixo nessa turma, daqui para a frente o tratarei por Chico. Com todo respeito.
Digo isso porque as músicas do disco novo são muito reveladoras de quem é Chico agora e as antigas, escolhidas para compor o show, não são as mais conhecidas, mas talvez as que ele gosta mais, tem mais prazer em cantar, revelem melhor sua versatilidade, enfim... nos mostrem “Chico”. A roupa preta, que sempre lhe cai tão bem, e a simplicidade de cenário e iluminação, terminam o recado: viemos ver e ouvir (muito mais ouvir) “Chico”.
O que parece (para quem o acompanha), é que Chico Buarque de Holanda, chegou a tal complexidade, que a riquíssima simplicidade com que se mostra hoje me parece ser a consequência de ter vivido 68 anos não desperdiçando uma só influência, um só papo, uma só revelação.
É a consequência de ter estado atento, antenas captando sempre tudo, muitas vezes se autodestruindo na busca do que havia de importante e relevante à sua volta.
Sim, porque Chico Buarque não é um acidente.  Eu o definiria como um “espaço/tempo” em que tudo se misturou, e sua cabeça processou, redefiniu e ressignificou  para, a partir daí, criar o que talvez haja de mais belo na nossa música. Chico foi nosso tradutor. Às vezes  não sabíamos nem bem de quê, mas o entendíamos com a alma.
Chico é Pixinguinha, Cartola, Noel,Luiz Gonzaga,Dorival, Vinícius, Antônio Brasileiro (muuiiiitoooo Tom), João Gilberto, sua letrada e fascinante família, seus irmãos, os amigos dos seus pais, nossa... quanta gente mais.
O Chico é a Marieta, suas filhas, seus netos. 
Chico é a ditadura, a censura, o exílio.
Chico é os livros que leu, os que escreveu, as noites que imagino que não dormiu lutando com as palavras, a tietagem que o cerca, as mulheres que o amam, os homens que o odeiam.
Chico é as noites de boemia, o monte de uísque que tomou, os porres, os cigarros, talvez as drogas. As desavenças conjugais, as diferenças com os outros, as profundezas de sua solidão em Paris ou aqui, a capacidade imensa de conviver e ser gostado.
Chico é a simpatia, o sorriso, a empatia infinita sem a qual não falaria de putas, mulheres abandonadas, homens trabalhadores, gente humilde, marinheiros, mulheres de marinheiros, casamentos desfeitos de todas as formas, paixões e alegrias com tamanha carga emocional.
Não. Tenho certeza: Chico não é um acidente.
Tampouco é um acidente que, ainda por cima, tenha aqueles brilhantíssimos olhos verdes, que tenha até hoje aquele ar de menino tímido, que tropece no seu próprio charme.
Alguém o fez assim completo para que prestássemos atenção. Ele tinha coisas importantes a dizer. E aproveitou todos os seus dons. Não desperdiçou nada. Deu-nos tudo que tinha e deve ser por isso que hoje, mesmo aos 68 anos, seu semblante é pleno e feliz. Talvez seja o dever cumprido.
Me lembro que quando Caetano fez 50 anos, eu fui ao show e pensei: se ter 50 anos é isso, estar tão lindo, sereno e pleno, quero que os meus 50 cheguem logo. Não foi diferente com Chico Buarque. Mas hoje tenho certeza de que é preciso merecer essa plenitude e essa alegria. É preciso ter sofrido e trabalhado muito. Sofrido ao menos para se achar em meio a tantas freqüências diferentes.
Só acho que hoje, Chico poderia pensar melhor sobre o que representa. Quando diz em “Querido Diário” que pensou em ter uma religião, em sacrificar uma ovelha, ele adota o tom do ateu que sempre foi, mas que agora me parece equivocado.
Não sei se deveria pensar em ter uma religião mas  simplesmente agradecer por ter sido escolhido como o cara que viveria, perceberia e decodificaria o propósito primeiro de tantos talentos, acontecimentos, alegrias e desventuras de uma linha de tempo muito maior que sua vida cronológica, e saberia misturá-los e transformá-los em pura emoção, daquelas que são capazes de nos fazer chorar um show inteiro.
Talvez só acender uma vela.
Fala muito mais alto quem fala ao coração.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A pele que habito


Só hoje fui ver “A pele que habito”.
Sempre que entra em cartaz um novo filme de Almodóvar, fico louca para assistir e vou na primeira leva. Por acaso com esse não foi assim e talvez tenha sido bom. Não fui ver um Almodóvar qualquer, guardeio-o como um tesouro para o início do ano para sentir coisas muito  diferentes do universo feminino colorido e triste. Claro que estou até agora pensando, capturada que fui pelo filme de terror de Almodóvar.
O filme é tenso, muito tenso, cria um enorme mal estar. É um filme de terror sem os gritos  e sustos do gênero. Mas para mim vai além. Acho que deve ser a tensão de habitar a pele errada. Deve ser muito tenso. Penso que todos nós devemos nos perguntar, quando não estamos bem, onde é que a pele não está de acordo com a alma.
Também não sei se o nome Vicente foi proposital numa referência a Vincent Van Gogh, outro que não suportou a própria pele e teve que terminar com a vida.
Que possibilidades terá o Vicente do filme? Na minha opinião nenhuma. Só a morte. Como de resto, nenhuma possibilidade teve a ex-mulher que, ao ver seu reflexo queimada, não viu alternativa senão atirar-se pela janela.
Ter um interior intacto, não basta: a pele tem que ajustar-se.
Ter a pele perfeita não garante identidade: o interior deve dar seu “de acordo”.
A primeira frase do filme já nos mostra o equívoco do cirurgião inescrupuloso, acostumado a lidar com peles que as pessoas provavelmente lhe pediam para ajustar à suas almas: “não basta salvar a vida de um queimado. É preciso lhe dar um rosto. O rosto é o que nos define”.
Foi por falta desse rosto que viu sua mulher saltar para a morte e, depois, quando se viu tomado pelo ódio por Vicente (o rapaz a quem ele atribuiu a culpa pela morte de sua filha), tratou de usá-lo para reconstruir sua mulher com a pele perfeita que não queima e não sente dor, mas também (vingança suprema) dar-lhe um invólocro incompatível que, ele sabia, seria intolerável - ou não sabia, louco que era.
Ódios tornam-se amores, o criador esquece-se da alma da criatura e se apaixona pela pele que construiu - leia-se rosto e corpo da ex-mulher.  Na minha opinião, o cirurgião nem sabe que pele lhe serve mais – perdera a mulher  para a falta de rosto, e a filha para a falta de alma. Testemunhar o salto e a figura da mãe – sabendo que homens podem produzir aquilo (o incêndio com o Tigre), tirou da menina qualquer possibilidade de confiança e afeto pelo ser humano.
Robert é um homem aprisionado em sua própria pele e alma - ou nem uma coisa nem outra, um homem que desconhece seus limites e "onde habita",   com a arrogância de um Deus que pretende dar e tirar peles transgênicas a qualquer preço, e cujos castigos e vinganças que conhece, passam por essa manipulação. Fazer a barba de Vicente é uma amostra do quanto "lidar" com peles lhe dá prazer.
O filme é trágico. Muito trágico. Pessoas comuns impulsionadas para a morte por acasos que aparentemente não deveriam pertencer a suas vidas. Pessoas incapacitadas de lidar com seu dentro x fora.  
A incompatibilidade dos  dois parece que não deixa saída. Ou há e Almodóvar não vê? O que dizer do Fantasma da Ópera, do Corcunda de Notre Dame, do Homem Elefante? E do mundo de almas atormentadas de artistas, intelectuais e pessoas comuns que nem por isso só vêem a morte como solução? 
Ou sou eu que não vi ainda uma "segunda pele" no filme e sim, Vicente vai achar um jeito de viver com sua nova pele? 
Não acho que haja resposta.
Para mim, fica a pergunta: o que, de fato, nos define? O filme é uma história de terror gratuita ou quer nos fazer pensar?
Sou obrigada a confessar que mais uma vez abriu-se a temporada Almodóvar. Toda vez que assisto a um filme novo, morro de saudade dos anteriores e os re-vejo quase todos em seguida. 
Não vai e ser diferente dessa vez. amanhã começo a alugar os filmes antigos e terei um delicioso mês de janeiro recheado de Almodóvar.
A Pele que Habito permanecerá em minha cabeça por muito tempo. Provavelmente chegarei a muitas conclusões, sozinha ou com a ajuda dos amigos, mas para mim foi dos melhores filmes dos últimos tempos.