Nunca escrevi sobre
o amor. O assunto nunca me inspirou nenhuma ideia ou olhar que eu
achasse que valesse a pena compartilhar, fora o fato de que amar é como dançar
ou rir. Só se sabe como é se o fato se processa
com você. Impossível descrever.
Além disso, nunca tentei teorizar sobre algo com o que
nāo sonhava , não idealizava, não fazia
planos e nem achava que um dia seria parte importante da minha vida. Muitas
razōes que nāo vêm ao caso agora. Apenas foi assim.
Vida amorosa me parecia qualquer coisa de sempre muito
parecido. Scripts previsíveis tanto
quanto seus inícios e fins.
Acho que tinha razão.
Salvo descrições brilhantes de situações amorosas feitas
de grandes autores, que tão maravilhosamente souberam destrinchar a alma
humana, muito pouco ou quase nada faz diferença nesse assunto. Trata-se de um ítem
a mais no rol de comportamentos que de tempos em tempos são revistos por psicólogos,
psicanalistas e que tais.
Não conheço de perto nenhum relacionamento no qual
gostaria de estar.
Mas….uma reviravolta aconteceu na minha vida. Todos os
que têm me acompanhado, sabem o quanto tenho trabalhado, sofrido e procurado
saídas, tratamentos, tudo que me leve a
um auto-conhecimento maior e, através
dele, uma vida menos atormentada. Não tenho recusado nada que faça um
mínimo de sentido. Me lanço de cabeça em todas as possibilidades de colocar o
meu inconsciente em contato com o consciente e mais o corpo e mais as energias
sutis das quais também somos feitos .
Hoje posso dizer com muita certeza e clareza: essa
luta nunca é em vão. A gente sofre, pensa, lê, se analisa, procura atividades
que trabalhem os pontos críticos, se entrega, confia, melhora um pouco, sofre
mais, dá 3 passos para a frente, 5 para trás, desconfia que nada seja capaz de
ajudar. E aí um dia, andando na rua e pensando em mil outras coisas, você tem
uma epifania e num passe de mágica, compreende. Enxerga. Tudo se encaixa e
começa a fazer sentido. E você fica feliz e canta e rodopia. A conversa tinha
sido silenciosa e sofrida, mas os canais estavam se abrindo e de repente,
aconteceu. E nessas horas, a gente aprende que as coisas nunca acontecem quando
achamos que vāo acontecer. Controlar os tempos dos nossos processos internos e
externos não está mesmo ao nosso alcance. O que podemos é
escancarar a cabeça e trabalhar muito duro. Entender, assimilar, enxergar com
muita verdade e humildade o funcionamento da teia da vida.
As coisas têm funcionado. Estou feliz.
Imaginem que no meio da rua do cemitério Sāo Joāo
Batista, indo para a aula de dança, a
seguinte ficha me arromba a cabeça como um tijolo: sāo as novidades, as
experimentações, as coisas que invento de uma hora para a outra, os estudos
novos, os trabalhos que nunca fiz que me
fazem viver e me enchem de energia. Tudo é exatamente o contrário do que sempre
achei. Chego a a dizer que nunca fui feliz exatamente
porque passei a vida sofrendo pelo que
era a grande estratégia que eu mesma tinha estabelecido para viver bem, alegre,
e sem tédio. A princípio eu soube como viver da melhor forma para mim.
Estraguei tudo e transformei minha vida em enormes buracos e dores porque nāo
achava justo e, me culpava muito por nāo ser igual a quase todo mundo.e nāo ter
o nível de compromisso com a vida que
todos esperavam. Vesti todas as carapuças que todo mundo enfiou na minha
cabeça. Eu, que nem achava que a vida fosse assim, nenhuma brastemp. Ironia das grandes. Pode parecer um exagero
mas do fundo do meu coracāo, chego a achar que abri māo de um membro para
aprender outras coisas e me desafiar. Parece que a coisa é sem limites e, entendido isto, estou envolvida até o
pescoço no desenvolvimento do meu equilibrio – interno, externo, físico,
mental, emocional, energético. Nunca nada me surpreendeu tanto.
E de verdade nem me importei muito quando descobri isso. Porque
ainda falta conhecer tanta coisa. Ainda há tantos desafios : todas as idades
que ainda nāo tive e, portanto, nāo conheço;um monte de trabalhos que ainda nāo
fiz, livros que nāo li, músicas que nāo compus , crônicas que nāo escrevi,
gente que ainda nāo conheci e, por último mas nāo menos importante, a família
que nāo formei e quero muito. Família ainda sem forma na minha cabeça, sem
regras, sem definiçāo. Mas uma possibilidade
real. Posso agora me entregar a meu
projeto de amor incondicional e eterno, de entrega total, de doaçāo plena sem
achar que com isso estarei perdendo
algo. Posso, finalmente me comprometer com o amor da forma como sempre achei
que devesse ser. Tenho agora a chance de fazer a melhor escolha da minha vida –
aliás já escolhi, posso admirar essa pessoa calmamente,
contemplar, aprender, rir, ver no fundo dos olhos os sentimentos mais sutis:
pequenas tristezas, alegrias calmas, a beleza da alma, as preocupações, curtir
muito a companhia que há de ser um privilégio. Só o fato de estar me sentindo apaixonada
depois de tantos anos que nem sei mais contar, já muda tudo. Quem sabe ele também se apaixona
por mim? Está tudo tāo sincronizado, os
tempos tāo bem marcados, que nāo me
parece nada impossível.
Enquanto as tramas acontecem em níveis que nāo posso
controlar, vou vivendo feliz, animada e cheia de planos. Um detalhe engraçado:
sempre adorei cantar. Em casa, no banheiro, em qualquer lugar. Um dia emudeci e
nunca mais cantei. Voltei a trinar como um passarinho. Canto o dia todo outra
vez. Interpreto, voltei a aprender letras. Uma delicia. Sinto-me Jaciara.
Bom, a intençāo era falar de amor. O problema é: como
falar desse amor ou de outro qualquer? Como se evita as bobagens e o senso
comum dando ao assunto a dignidade que
ele merece?
O que me ocorre como ajuda fundamental, é dar uma
olhada e pedir emprestada a dinâmica do genial Fragmentos de um Discurso
Amoroso de Roland Barthes.
Assim se inicia
esse livro que, na minha opiniāo é uma
pérola. Um achado para resolver esse problema de falar do amor. “ A necessidade
desse livro se apoia na seguinte consideraçāo: o discurso amoroso é hoje em dia
de uma extrema solidāo. Esse
discurso talvez seja falado por milhares
de pessoas (quem sabe? ), mas nāo é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas
linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído
nāo somente do poder , mas também de seus mecanismos (ciências,conhecimentos,
artes). Quando um discurso é, dessa
maneira, levado por sua própria forca à deriva do inatual, banido de todo espirito
gregário,só lhe resta ser o lugar, por
mais exíguo que seja, de uma afirmaçāo . Essa
afirmaçāo é, em suma, o assunto do livro que começa”.
Para entender melhor o método que Barthes adota: substituiu-se, nesse livro,
a descriçāo do discurso amoroso por sua simulaçāo e devolve-se a esse discurso
sua pessoa fundamental, que é o eu, de modo a por em em cena uma enunciaçāo e nāo uma análise .
É um retrato, se quisermos, que é
proposto; mas esse retrato nāo é psicológico,
é estrutural: ele oferece como leitura um lugar de fala: o lugar de alguém que
fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que nao fala.
Assim, para compor o livro, há o sujeito apaixonado, o
objeto amado e estaria faltando o discurso propriamente dito. Sobre o que versa
o discurso amoroso? Barthes convencionou chamar os assuntos sempre recorrentes
de “ figuras” . Sāo situações que quase todos os apaixonados vivem e para as
quais parece que há uma gama de reações de uns e de outros possíveis de serem
mapeadas . Essas “ figuras”, foram pinçadas em sua grande maioria da literatura
mundial, mas também poesia, filosofia e exemplos reais trazidos pelos amigos. O
discurso amoroso atravessa fronteiras, culturas e, provavelmente, o tempo.
“O enamorado nāo para de correr na sua cabeça,
de empreender novas diligências e de intrigar contra
si mesmo. Seu discurso só existe através de lufadas de linguagem, que lhe vêm
no decorrer de circunstâncias ínfimas, aleatórias. A “figura” é o enamorado em açāo.
Quando digo que estou apaixonada por alguém que mal
conheço, fiquei presa a uma figura que Barthes chama de “ Irreconhecivel”. Essa figura tem a ver com os
esforços que o sujeito apaixonado faz para compreender e definir o ser amado “em
si” , como um determinado tipo característico, psicológico ou neurótico, independentemente
dos dados particulares da ligaçāo amorosa.
“ Estou presa nessa contradiçāo; de um lado creio
conhecer o outro melhor do que ninguém (no meu caso, espero que venha a ser
assim)e afirmo isso triunfalmente a ele – só eu te conheço bem! E, por outro
lado sou frequentemente assaltada por essa evidência: o outro é impenetrável,
raro, intratável. Nāo posso abrí-lo, chegar até a sua origem, desfazer o
enigma. De onde ele vem? Quem é ele? Por mais que me esforce, nāo o saberei
nunca.
Reviravolta: “ Nāo consigo te conhecer” quer dizer: “ Nunca saberei o que você pensa
verdadeiramente de mim” Nāo posso decifrar você porque nāo sei como você me
decifra.
Se desgastar, se esforçar por um objeto impenetrável é
pura religiāo.
Fazer do outro um enigma insolúvel do qual depende
minha vida, é consagrá-lo como deus. Nāo decifrarei nunca a pergunta que ele me
faz. Só me resta entāo converter minha ignorância em verdade.
Nāo é verdade
que quanto mais se ama mais se compreende; o que a açāo amorosa consegue de mim
é apenas uma sabedoria: nāo tenho que conhecer o outro. Sua opacidade nāo é de
modo algum a tela de um segredo mas sim uma espécie de evidência da qual fica
abolido o jogo da aparência e do ser. Experimento entāo essa exaltaçāo de amar profundamente um desconhecido, que o será sempre:
movimento místico: tenho acesso ao conhecimento do desconhecido.
Fico certa entāo, de que o fato de pouco conhecê-lo
hoje nāo vai mudar ou mudará muito pouco. A sabedoria de conviver com esse “
impenetrável” e amá-lo, é que vai garantir o sucesso do nosso relacionamento
Esse livro me ajuda também a falar de amor, porque a
maioria das “ figuras” relacioandas é exatamente aquilo que nāo queremos mais.
Sāo comportamentos pouco verdadeiros, manipuladores, em geral tentando proteger
o sujeito apaixonado dos confrontos que o
fazem sofrer. Sāo repetições de comportamentos que deixam qualquer amor
sem graça e das quais fujo como o diabo da cruz: ciúmes infundados, esperas
sofridas cheias de fantasias dolorosas, planos de suicídio para chamar a atençāo
(menos no caso do pobre Werther que se matou mesmo por Charlotte). E por aí vai.
Foi um livro sensacional para sua época- 1981. Todos nos identificamos, parecia
que nāo havia outra forma de amar e agir. Com isso, achávamos graça porque ele
ia na mosca e todo mundo fazia a mesma coisa. Só mais tarde fui começar a
pensar, que se fico presa, como sujeito apaixonado, a essas reações e
comportamentos, perco o melhor do objeto amado e, portanto, o melhor do amor.
De 1981 para cá, muito tempo passou, crescemos, amadurecemos e o livro continua
útil, para ensinar o que nāo fazer.
Como o meu amor é recente e falta convivência nāo
posso analisar muitas “ figuras”. E, como disse, nāo é nada disso que hoje
quero viver.
Assim sendo é o enamorado que fala e que diz:
O abismo é um momento de hipnose. Nada sei ainda sobre
o objeto amado. Mas já estou abismada (isso aconteceu de verdade)
O que me abismou? Uma sensaçāo forte e quase mística
de que “ somos a mesma pessoa” em algum nível de matéria. Eu brinco muito que “
sou” Fernando Pessoa tamanha foi minha identificaçāo com ele a vida toda.
Sempre achei que eu podia ter escrito cada uma daquelas poesias. Me ajudou
muito na adolescêcia quando me trancava com ele no quarto e sentia toda a decepçāo
com a vida, toda a angústia que nós dois tínhamos e eu lia em voz alta e
chorava. Quando conheci recentemente esta outra pessoa, milagrosamente senti
que estou muito ligada a ele. Estou dissolvida, e nāo em pedaços; caio,
escorro, derreto. Esse sentimento nāo tem nada de solene, é exatamente a doçura.
E esse é muito o bem que ele me faz. Ficar olhando para ele e ouvindo o que tem
a dizer – que é sempre lindo e profundo e aparentemente simples e muitas vezes
muito engraçado. E os olhos tāo expressivos sem que eu consiga entender ainda
que expressões sāo aquelas, só sinto que sāo calmas e me parece impossivel que
por aquela cabeça passe qualquer coisa de rude, pouco gentil ou agressiva. Nem
dá para acreditar no tamanho da inteligência que aparece em vários momentos de
genialidade explícita.
Depois de abismada, tudo que o sujeito apaixonado mais
deseja na vida é um abraço, um sonho de uniāo total com o ser amado.
“ Estamos encantados, enfeitiçados; estamos no sono,
sem dormir; estamos na volúpia infantil do adormecer: é o momento das histórias
contadas, o momento da voz que vem me imobilizar, me siderar, é a volta à māe.
Nesse incesto reconduzido, tudo é entāo suspenso: o tempo, a lei, a proibiçāo:
nada cansa, nada se quer. Todos os desejos sāo abolidos, porque parecem definitivamente
transbordantes”. (Como eu adoraria ficar assim nesse abraço, ouvindo todas as
histórias que você tem para contar, na absoluta aboliçāo de qualquer desejo)
E daí em diante, é claro que só quem fala sou eu – o
sujeito apaixonado que nāo tem sequer um único elemento de realidade para colocar
qualquer desejo no campo das possibilidades. Como amar o que nāo conheço? E
amo. Vejo o objeto amado em cena sempre
que possível. Tento dar significado a cada gesto, e me atrevo a sonhar que um
ou outro sorriso foi para mim. Tola. O sujeito apaixonado sempre acha que o ser
amado o ama também.
Mas em geral, continuo abismada. Fico de boca aberta
transida de carinho . Às vezes, mas é raro, me angustio pela impossibilidade de
fazer contato estando tāo perto e também
por nada saber que dê algum rumo ao meu próprio sentimento. A questāo é que o
vejo de uma forma tāo especial que nāo acredito que possa me fazer mal em
nenhuma hipótese.. Mesmo sem querer.
“ O psicótico vive sob o temor do aniquilamento ( do
qual as diversas psicoses seriam apenas defesas). Mas o “temor clínico do
aniquilamento é o temor de um
aniquilamento que já foi experimentado (primitive agony)….e há momentos em que um paciente precisa que lhe digam que o
aniquilamento cujo temor mina sua vida já ocorreu. O mesmo, parece, se passa
com a angústia de amor: ela é o temor de um luto que já ocorreu, desde a origem
do amor, desde o momento em que fiquei encantada. Seria preciso que alguém
pudesse me dizer: “ Não fique mais angustiada, você já o perdeu.”
Mas nāo consigo acreditar nisso. Esse luto que já está
certo desde que o amor começou, faz parte do tipo de relaçāo que nāo é a que
planejo para ser a última da minha vida. Está em meus planos conjugar o mais
que perfeito.
Estarei louca? “O sujeito apaixonado é atravessado
pela ideia de que está ou está ficando
louco’
“ Estou louca de amor, nāo estou louca de poder dizê-lo,
eu desdobro minha imagem: sou demente aos meus próprios olhos (conheço meu delírio),
perco simplesmente a razāo aos olhos dos outros, a quem conto comportadamente
minha loucura: consciente dessa loucura, discurso sobre ela.”
“ Há cem anos considera-se que a loucura (literária) consiste
nisso: “Eu, é um outro”: a loucura é uma experiência de despersonalizaçāo.
Para mim, sujeito apaixonado, é exatamente o contrário: o que me deixa louca é
tornar-me um sujeito, nāo poder me impedir de sê-lo. “ Eu nāo sou um outro”, é o que constato assustada.”
E assim, acabei falando do meu amor.
Faltou falar da figura de que mais gosto: a festa. Seria
maravilhoso viver em Festa. O sujeito apaixonado vive cada encontro com o ser
amado como se fosse uma festa.
A festa é aquilo que se espera. O que espero, da
presença prometida, é uma enorme infinidade de prazeres, um festim; me rejubilo
como a criança que ri ao ver aquela cuja simples presença, anuncia e significa
uma plenitude de satisfações; vou ter, diante de mim, a “ fonte de todos os
bens” .
(Entāo, nāo significa nada para você ser a festa de
alguém? )
Queria deixar
um recado em discurso direto para você.
Nada me ocorre. Entāo eu digo:
“Nāo tenho nada para dizer, a nāo ser que esse nada é
para você que digo. “