quinta-feira, 3 de março de 2011

Curtinhas 1 - Cora Rónai e eu

O que nós duas temos em comum fora o fato de eu admirá-la muito?
A paixão pelo mesmo  relógio. Eu o vi pela primeira vez no braço da personagem do Peter Coyotte no filme Lua de Fel. Uma cena de segundos e caí de paixão pelo "reverso". Meu generosíssimo ex-marido me presenteou com o dito e até hoje não me canso de ficar feliz por tê-lo. Isso faz mais de 10 anos.
Aí vai um trecho da coluna da Cora de hoje, falando do nosso objeto de desejo que conseguimos conquistar.
É bom dizer que só muito raramente me apaixono duradouramente por um objeto, daí meu encantamento com a descoberta.
Se procurarmos bem, os gostos e paixões também nos aproximam muito das pessoas!

Outras histórias de Saint Martin


Um dia passei por Marigot na volta de uma saída de mergulho, e vi um cartaz irresistível numa das joalherias do cais: “30% de desconto em todos os relógios”. Minha intenção era ir direto para o hotel, mas 30% de desconto nos relógios era um assunto sério. Não tenho mania de relógio, não coleciono relógio, mas sempre fui apaixonada por um relógio em particular chamado Reverso, fabricado pela Jaeger-le-Coultre. Eu estava de havaianas, com aquele cabelo espetado de quem volta do mar e uma camiseta XXXXL da Autodesk – um look, em suma, que não se usa nem para trocar a areia dos gatos, quanto mais comprar relógio em Marigot. Mas vá que a liquidação acabasse antes que eu voltasse à cidade, ou que se acabassem os relógios?


Parei o carrinho miúdo e amassado na primeira vaga e fui à joalheria. Por acaso, havia um Reverso exatamente como eu queria já no balcão que dava para a rua. Fiz sinal para uma das vendedoras. Ela me olhou de alto a baixo com indisfarçável desdém, fez sinal com a mão como quem diz “Espera aí” e continuou no papo com a colega. Esperei. Depois de um tempo fiz sinal de novo, e ela de novo me fez sinal para esperar. Nisso chegou à loja um casal americano de meia-idade, e as duas prontamente deixaram de papo e se puseram ao seu dispor. Ora, assim também não!
Será que uma de vocês podia me atender? – reclamei. -- Estou esperando há séculos.


A vendedora que me mandava esperar veio até o balcão, cheia má vontade.


-- O que é?


-- Eu quero aquele relógio.


-- É muito caro.


-- E eu lá perguntei o preço? Quero. Aquele. Relógio. Há alguma coisa no meu francês que você não esteja compreendendo?



A moça pegou o relógio me olhando de banda, e foi até o caixa. Meu coração estava aos pulos. Eu não tinha idéia do preço da coisa. 

-- Quero ver.


O relógio me foi entregue num clima de completa desconfiança. Era lindo, e exatamente como eu queria, em aço inoxidável, não muito grande, a perfeição com ponteiros. Entreguei-o de volta mas, quando ela começou a embrulhá-lo numa embalagem genérica, chiei de verdade e mandei vir a gerente.


-- Não estou sendo bem tratada nessa loja. Cadê a caixa original do relógio?


A gerente apareceu com a caixa, perguntou o que havia acontecido, ouviu a novela inteira, pediu desculpas e ofereceu um café. Aceitei com o ar altivo de quem compra relógios importantes todo santo dia; lá dentro, uma taquicardia louca. Não saber o preço já era o de menos. Pior seria se o meu cartão fosse recusado depois daquele número todo.


Pois não é que o cartão foi lindamente aceito?! Naquele momento, me senti vestida de Chanel da cabeça aos pés. A gerente e a vendedora se desmancharam em desculpas enquanto eu assinava a nota e descobria, afinal, o preço do meu tesouro: cerca da metade do que teria custado na Tourneau, em Nova York, onde eu sempre o namorava.


-- Aceito as desculpas de vocês, mas podem anotar as minhas palavras: nunca mais compro relógio nenhum com vocês.

 
Cumpri a promessa. É verdade que nunca mais comprei relógio algum, mas também ninguém precisa saber disso.




(O Globo, Segundo Caderno, 3.3.2011)

Um comentário: