segunda-feira, 3 de março de 2014

Uma infância qualquer se nāo fosse a minha



Nadando mar afora
Me vem o sentimento de outrora,
Da infância na beira da praia
Do brincar sem pudor e sem hora

Oa pés chatos motivos de andanças
Nas areias, nas pedras, pelas māos fortes do pai
 que nos adorava crianças e ao nos ver no final da tarde
 jogava-se em abraço de sal e nos levava a furar ondas que mesmo grandes nāo nos faziam dizer "ai"

Cedo aprendemos a confiar
Cedo nadávamos sem mais ter que em braços segurar
Nada de esfregar os olhos
Cegamente nos entregávamos depois que ele examinava o mar

Atravessando a rua, a escadinha e o portāo
Banho de mangueira, pulo de cachorro, latidos de excitaçāo
Se era dia de feira
Um mundo de cestas valia a exploraçāo

Eram tantas as frutas, os sabores, os odores
Eram tomates que comíamos tirados do pé
Cajus, mangas, umbus, cajás azedos de fazer careta
Eram a alegria das gentes e de um papagaio que, adivinhem, se chamava Zé

Zé quase que vive mais que nós
Fomos embora e com toda tristeza, deixamos o Zé para trás
De manhā nos oferecia café com aquela voz que só papagaio tem
E gritava Cláudiaaaa de um jeito que até hoje escuto mas sei que foi a última vez

Maria que nos protegia
Nos escondia dos castigos e bravezas da māe
Manhas e mentiras: lá vinham beliscões e palmadas
Corríamos às gargalhadas. Claro. Ela cansava, e nós nāo

Nāo sei o que era melhor: se aniversário ou doença que nunca era grave
Nos dois alegria e dias benditos
Nos dois todas as vontades feitas e o melhor:
Podia mexer em tudo que era sempre proibido.

As caixas de jóias, baús de roupas de festa, sapatos altos
Podia vestir, desfilar, virar atriz
Podia virar importante na máquina de escrever
E podia nāo ir à aula até nāo ter mais febre e o nariz parar de escorrer

Quem nāo estava doente morria de inveja
E tentava sempre pregar uma peça
Dor de barriga, garganta ou enjoo
Qualquer coisa servia prá nāo perder aquele dia 

Entāo a vida era assim: simples, verdadeira e divertida
O dia de amanhā era sempre conhecido
Nem sustos nem brigas nem inseguranças
Ninguém iria embora, e sobretudo, ninguém morreria

Nem pai, mem māe, nem Maria
Nem o Duque, nem o Zé
Nem meus irmāos ora queridos ora inimigos 
Nem ninguém nesse mundo porque deus nāo queria

Já aqui, todo mundo era de Ipanema
Eu, menina de Amaralina
Num tempo em que tinha muita vergonha
De ser carioca da gema.




2 comentários:

  1. Lindo...tão prazeroso!
    Percebo você e sua família claramente.

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  2. Que bom vc dizer isso Cris. Vc que nos conhece tāo bem. Fiquei trabalhando duro nesse objetivo de falar o que foi e o que se sentia, sem exageros, sem ser muito, sem ser pouco, sem ser chato rrrs. Nāo sabia no que ia dar. Deu nessa forma singela que fiz e refiz e troquei palavras e ordem de estrofe e coloquei e tirei personagens. Acho que isso nāo teria fim mas me dei por satisfeita só pra poder passar pra outra e trabalhar mais rsrr. Que coisa isso.
    Mas adorei que tenha tido o resultado que vc viu. O trabalho, parece mesmo, nāo é em vāo. Super beijo para minha leitora

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