terça-feira, 25 de março de 2014

A primavera da paz

Quando o mundo foi povoado e percebeu que era rico, um tempo que ninguém sabe quando foi,
Uma voz forte e autoritária mandou que todos escolhessem seus inimigos.
Os filhos da terra ficaram aflitos porque nem bem sabiam o que era isso
E muito menos o que deveriam fazer depois que a voz tivesse dito.            

Como um chefe do mundo, disse que todos tinham que ter inimigos para lutar
Caso contrário ficariam fracos e tolos, nada tendo em que pensar
Inimigo pode ser qualquer um diferente de você, dizia a voz
Qualquer um com mais que você, qualquer um melhor, mais capaz ou mais veloz

Inimigo é o que tem a terra que você queria ou a mulher da sua fantasia,
Inimigo é o mais forte, mais bonito, mais amado
Inimigo a gente escolhe e planta uma semente que se chama ódio
Quando cresce, dá uma frutinha ardida que só deixa uma saída: tirar-lhe a vida.

Os filhos da terra tiveram medo. As vozes eram diferentes e sempre traziam tristeza.
Mas pensavam que se não odiassem nem lutassem, que haveria para fazer nessa existência¿
E também, seria justo que houvesse gente com amor, ideais, arte e beleza
Construindo um outro mundo que, por certo, teria valores e decência¿

Assim justificando, já cheios de raiva e hostilidade, cada um saiu a procurar seu inimigo
Foi mais fácil que previam. Em pouco tempo todos odiavam. Quanta gente merecia castigo!
Todos fizeram pactos com quem chamavam de deus, outros com o diabo
Os que não queriam lutar sozinhos, juntavam-se em exércitos a enterrar cada um que devia ser odiado

E o mundo, depois de muito tempo de horrores que a voz dizia inofensivos
Virou um só grande mar. Vermelho, viscoso com um cheiro doce e enjoativo
Os filhos da terra e seus inimigos já nem respiravam, nem lutavam, nem se odiavam
Afogando-se todos no fluido infinito da vida derramado, perceberam que a voz tinha um só objetivo.

Ela, que sempre parecia diferente, brava que estava com a desistência, mostrou-se então;
Vinha sempre da escuridão. O que ela não sabia é que agora todos queriam enxergar
E viram que uma voz era do dinheiro, outra da inveja, outra da religião, outra da intolerância
E eram tantas que os filhos armaram-se do que puderam para resgatar o mundo e tirar da voz o poder e a ganância

E muito lutaram. E deram suas vidas para exterminar os inimigos reais
Acabaram com templos e deuses inventados; quebraram bancos
Derrubaram governos, prenderam ladrões e incendiaram dinheiro roubado
Chamaram de amigos todos os diferentes e os filhos ficaram de verdade iguais

Esta é a única guerra comovente que a história traz
A última das guerras de um mundo que quase virou um tribunal de almas de outro mundo
E sempre que os mais velhos sentam em volta da fogueira, puxam o ar lá do fundo
E aproveitam o bem que contar lhes faz. Dizem que jamais esquecerão a primavera da paz.



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