Quando o mundo foi povoado e percebeu que era rico, um tempo
que ninguém sabe quando foi,
Uma voz forte e autoritária mandou que todos escolhessem
seus inimigos.
Os filhos da terra ficaram aflitos porque nem bem sabiam o
que era isso
E muito menos o que deveriam fazer
depois que a voz tivesse dito.
Como um chefe do mundo, disse que todos tinham que ter
inimigos para lutar
Caso contrário ficariam fracos e tolos, nada tendo em que
pensar
Inimigo pode ser qualquer um diferente de você, dizia a voz
Qualquer um com mais que você, qualquer um melhor, mais
capaz ou mais veloz
Inimigo é o que tem a terra que você queria ou a mulher da
sua fantasia,
Inimigo é o mais forte, mais bonito, mais amado
Inimigo a gente escolhe e planta uma semente que se chama
ódio
Quando cresce, dá uma frutinha ardida que só deixa uma
saída: tirar-lhe a vida.
Os filhos da terra tiveram medo. As vozes eram diferentes e
sempre traziam tristeza.
Mas pensavam que se não odiassem nem lutassem, que haveria
para fazer nessa existência¿
E também, seria justo que houvesse gente com amor, ideais,
arte e beleza
Construindo um outro mundo que, por certo, teria valores e
decência¿
Assim justificando, já cheios de raiva e hostilidade, cada
um saiu a procurar seu inimigo
Foi mais fácil que previam. Em pouco tempo todos odiavam.
Quanta gente merecia castigo!
Todos fizeram pactos com quem chamavam de deus, outros com o
diabo
Os que não queriam lutar sozinhos, juntavam-se em exércitos
a enterrar cada um que devia ser odiado
E o mundo, depois de muito tempo de horrores que a voz dizia
inofensivos
Virou um só grande mar. Vermelho, viscoso com um cheiro doce
e enjoativo
Os filhos da terra e seus inimigos já nem respiravam, nem
lutavam, nem se odiavam
Afogando-se todos no fluido infinito da vida derramado,
perceberam que a voz tinha um só objetivo.
Ela, que sempre parecia diferente, brava que estava com a
desistência, mostrou-se então;
Vinha sempre da escuridão. O que ela não sabia é que agora
todos queriam enxergar
E viram que uma voz era do dinheiro, outra da inveja, outra
da religião, outra da intolerância
E eram tantas que os filhos armaram-se do que puderam para
resgatar o mundo e tirar da voz o poder e a ganância
E muito lutaram. E deram suas vidas para exterminar os
inimigos reais
Acabaram com templos e deuses inventados; quebraram bancos
Derrubaram governos, prenderam ladrões e incendiaram
dinheiro roubado
Chamaram de amigos todos os diferentes e os filhos ficaram
de verdade iguais
Esta é a única guerra comovente que a história traz
A última das guerras de um mundo que quase virou um tribunal
de almas de outro mundo
E sempre que os mais velhos sentam em volta da fogueira,
puxam o ar lá do fundo
E aproveitam o bem que contar lhes faz. Dizem que jamais
esquecerão a primavera da paz.
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