sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Uma gota do meu "sentir" Borgeano

Fiquei de escrever sobre Borges.
Nao, não sobre ele, sua vida e sua obra, mas minha experiência com ele, minhas sensações.
Que difícil que é. Estou me sentindo, pela primeira vez, alguém que precisa escrever e nem sabe por onde começar.
Primeiro, que há anos não pego um livro dele e, consequentemente, todas as emoções que ele me despertou estão guardadas em algum baú, do qual preciso encontrar a chave. Tenho certeza de que não joguei fora esta chave. Atirei longe muitas outras, mas não esta.
De modo que, nos últimos dois dias, fiquei fazendo uma viagem de volta ao tempo em que ele apareceu na minha vida para ficar para sempre, tentando puxar de lá os prazeres e as descobertas vindas daquele homem e sua obra.
Não sou uma crítica literária, nem pretendo. Aliás, disso me lembro, foi o próprio Borges que me deu essa força, confirmando que eu estava certa: “nunca leia críticas, ou interpretações dos livros. Leia “o livro”. Ouça a voz do autor. Às vezes é mais difícil, mas sempre você estará livre para concluir sua própria obra, sem intermediários” era o que mais ou menos ele dizia.
Ao contrário de outros autores, Borges foi um homem (felizmente), de muito falar. Concedia de bom grado muitas entrevistas, falava o que pensava, e tanto quanto ler um  de seus livros, tomar conhecimento de seu pensamento era – e é, muito gratificante, pois além de sábio e original, é de uma elegância ao falar, de uma humildade que só pode existir na grandeza de uma alma que, quanto mais lhe faltava em “enxergar”, mais lhe sobrava em sentir, desenvolver novos olhares e descobrir onde está a sabedoria.
Assim, tentarei pincelar “meu olhar”. Meu singelo e, talvez, tolo olhar.
Quando comecei a entrar no mundo Borgeano, sem nenhuma referência prévia, a não ser a de que era um grande autor, fiquei muito surpresa. Não entendia direito o que era aquilo e mais, não entendia muitos dos seus contos. O curioso, porém, é que seguia lendo avidamente com uma emoção e “facilidade” que só depois fui compreender.
Eu não entendia, a princípio, o que ele queria dizer com aquelas histórias, mas elas me davam muito prazer: eram gostosas, às vezes engraçadas, espirituosas. Outras vezes de uma impossibilidade genial. E o que mais me encantava era ver a “cara de pau” com que ele inventava referências, fatos, datas, nomes...tudo, para a gente ter certeza de que se tratava de um fato real e depois descobrir a deslavada mentira. Adorava isso. Sem apreender direito todo sentido, mas adorava.
Há livros difíceis e que se lê a duras penas. A crítica especializada enaltece a obra e a gente lê, mas que luta....Foi com o próprio Borges que aprendi que “se um livro for difícil de ler, o autor fracassou.”
O maravilhoso em Borges, para mim, foi que, mesmo não compreendendo muita coisa a princípio, não parava de ler de tão gostoso e notava que ia ficando cada vez mais à vontade com a obra (acho que o termo é esse, à vontade) a tal ponto que fui me tornando um pouco “dona” do que ali estava escrito, e fazendo, sem cerimônia alguma, minha própria obra a partir de tudo aquilo que ele sugeria.
Em outras palavras: Borges tinha seu próprio universo do qual, nós leitores, podíamos nos apropriar e perceber (ou inventar) como aquilo tudo se encaixava no nosso próprio universo.
O universo Borgeano é maleável e, sempre de ajeita dentro da gente.
Bom, isso traz graves conseqüências: a primeira, e mais óbvia, o leitor descobre, rápido, por que ele é um monstro sagrado: a obra é aberta. A obra é para sempre. Se só Borges escrevesse no mundo, se houvesse apenas os livros dele, não haveria do que reclamar. A cada vez que se relê, é um novo livro. Tudo que está lá é igual  mas o livro é outro. É uma obra eterna como poucas.
A segunda grave conseqüência é que, uma vez que se tenha sucumbido aos encantos Borgeanos, passa-se muito tempo, talvez a vida toda, a não querer ler mais “qualquer coisa”. A pessoa fica exigente, fica procurando mais em cada leitura e, muitas vezes, essa busca é bem decepcionante. Ou seja, diminuem as possibilidades.
A terceira, e talvez a mais grave, é que quando o leitor descobre em cada conto, em cada passagem, que ele está falando da vida - corriqueira, sonhada, inventada, externa, interna, interpretada, sentida - às vezes simples, às vezes absurda (mas o que é a vida senão tudo isso junto?), esse mesmo leitor passa a sofrer de um mal incurável: quer sentir essa totalidade em tudo que vê, toca, lê e - mal supremo, nas conversas que mantém cotidianamente. Mergulhar em Borges, segundo minha experiência, é dar adeus à admiração pela maioria das falas literais, pelo realismo puro (em todas as artes,  pseudo-artes, aspirantes à arte), pelos relatos lineares totalmente verdadeiros (só aceitáveis nas crônicas haha), enfim....é reduzir o universo dos grandes livros, dos grandes filmes, das grandes músicas, das grandes obras plásticas e, inferno total, dos grandes interlocutores, a muito poucos.
Quer me parecer, nesse momento, que as três consequencias são as mesmas, mas deixemos como está.
E aqui tenho que citá-lo mais uma vez::
“A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito.E eu contesto: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito.”
Se pensarmos em todo o alcance dessa afirmativa, veremos que o Espírito aparece de quando em quando nesse mundo. Talvez não em outros (mundos). 
Agora que comecei, poderia escrever para sempre. O baú se abriu e dele querem saltar infinitas formas de ver, de pensar, de falar. Feche-se o baú por falta de espaço e de disponibilidade dos leitores (os meus, não os dele).
Percebo hoje, que foi um erro ter passado tanto tempo sem reler Borges – teria sido uma forma de “respirar” de que tanto  precisei ao longo dos anos.
Poderia listar meus contos preferidos, minhas imagens preferidas...mas vou sugerir que cada um se entenda com Borges. Quem nunca se deu esse prazer, jamais é tarde. Quem já se deu, adoraria que conversasse comigo e contasse suas experiências: duvido que haja duas iguais.
Só vou terminar falando de uma imagem que jamais me saiu cabeça: a do livro infinito.
Resumindo: “um homem deu a outro, como um presente ou troca por outra coisa (não me lembro bem), o livro infinito. O que não tinha primeira página nem última página. Nem começo, nem fim. O que recebeu o livro, feliz e incrédulo, começou a testar: pegava com os dedos as poucas primeiras páginas e elas logo viravam umas 900 páginas. O mesmo com as últimas. Seguiram-se inúmeras tentativas inúteis de “pegar” as primeira e última páginas.
O homem, percebeu que aquilo era um presente que o deixaria louco (pergunta minha: quantos, dentre nós, somos capazes de lidar com o infinito?). Então achou que era um livro amaldiçoado e queria se livrar dele. Pensou em fazer uma fogueira mas teve medo que a fogueira fosse, também, infinita. .
Não me lembro a continuação, mas um livro infinito, para mim, é o livro Borgeano e em última análise, as infinitas possibilidades de vida – quer as vividas, quer as não vividas mas que seriam possíveis. E não, não há com o que se preocupar: a fogueira não é infinita porque os livros são de papel e nunca têm mais de 200 páginas. Mas o que é o livro senão o que ele contém e o que reverbera no leitor?
Bom, nesse caso a fogueira pode, sim, ser infinita.

Em tempo: Um dos meus contos favoritos, talvez porque tivesse tudo a ver com uma situação que vivi anos depois e que me remeteu ao conto, é "Exame da Obra de Herbert Quain", contido no livro Ficções.

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