quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Mais dia, menos dia, teremos todos que pensar nisso. Ou deixaremos a decisāo no testamento.

Já estava tudo decidido. Eles iriam embora. Foram muitos anos relutando, aumentando o apego, aumentando a quantidade, nāo conseguindo imaginar a vida sem a presença daqueles que me deram tantas alegrias.
Que me mostraram tanta coisa nova. Que, por assim dizer, me forjaram. A felicidade começava na leitura do caderno prosa e verso - procurando as dicas, ou nas tardes passadas entre eles, admirando os conteúdos, os cheiros, as novas capas, os assuntos palpitantes.
O mundo estava contido em cada livraria e a sensaçāo era de que seria impossível escolher algum. Ou entende-se o mundo todo ou nada. Melhor desistir. Diante da impossibilidade de escolher uma ou outra, crise de ansiedade. Tremores, suores. Contas a nāo mais poder para ver quanto o dinheiro podia comprar. Culpa pelas dívidas. Dívida é igual a culpa. E passados os piores momentos:  êxtase.
Sou dona de mais isso tudo. Nāo poderei morrer sem lê-los todos. Na pior das hipóteses tratava-se de um investimento na aposentadoria. Quem coleciona nāo morre. Tem sempre um motivo para continuar vivendo.
E como em cada fase da vida é de um jeito que a gente quer ver o mundo e, a literatura, em forma de romances, contos ou poesias, é sempre tāo real como qualquer sonho ou notícia, a gente vai lendo, gostando, nāo gostando, se transportando para outros mundos e outros tempos. A propósito, quem nāo aprendeu com a literatura a relatividade de tempo e espaço? Já nāo teria valido a pena?
Assim os anos foram passando. Entre alegrias infinitas, histórias inesquecíveis, os que li mil vezes e aqueles que nunca li mas estāo lá aguardando sua vez. Poderei nunca ler um livro que tenho mas acho que qualquer um deles existir como projeto, já justifica a existência. Nāo existencialísticamente falando.
Claro que a vida sem eles nāo faria o menor sentido. Eles me definem hoje e definiram sempre.  Sāo quem sou. Formaram minha vida nas horas boas de puro deleite, e nas solitárias quando também eram eles que me confortavam.
Nāo podia supor que chegasse o dia em que tudo mudasse. Em que tivesse muita vontade de desocupar espaços, em que nāo achasse mais importante estar rodeada por MEUS LIVROS. Em que nāo mais precisasse deles para me lembrar do que vivi. Comecei a olhar para as estantes e ....adeus sentimentalismo. Já podia imaginar quais -poucos, ficariam e para onde iriam todos os que iria doar. E também,  comecei a  pensar, quantos livros cabem em um gadget desses de e-books? Para que tanto espaço destinado a livros em apartamentos que já nāo cabem mais nada? E os CDs transformados em coisinhas de MP3? Nāo faz mais sentido (digo isso nāo sem tentar me convencer de que minha tara pelo papel, pelo toque, pelo ritual, sāo coisas do passado.  De que o novo sempre vem.)
Mas aí......hoje aconteceu o que nāo era para acontecer porque minha certeza nāo era assim tāo certa e toda a  teoria que eu tinha montado para me convencer, mostrou-se de um equilíbrio para lá de instável.  Bastou um sopro e lá se foi a casa do primeiro porquinho.
Claro que entre os livros guardados com carinho, está toda a obra de  Jorge Luis Borges que configura, talvez, o meu único arrependimento nessa vida. Se fosse perguntada, na hora da morte, o que teria feito diferente, responderia: teria lido mais Borges. No meio da tarde de hoje, sem nada que o explique,  tive uma tremenda saudade. E me pus a folhear o "Pensamento vivo de Borges". Chorei, como todas as vezes. Ele me comove muito falando em primeira pessoa. Me parece quase uma figura mítica na qual só eu acredito. Impossível colocar Borges na rua como quem coloca um Milan Kundera, por exemplo - para falar de outro que habita minha estante mas que, com certeza, jamais ficarei tentada a reler. Nos poucos pares de horas que tive hoje para tentar aplacar minha abstinência Borgeana que eu nem sabia de que tamanho era, deu-se uma reviravolta e vou transcrever aqui alguns pensamentos de Borges só para os mais esquecidos saibam que nāo estou exagerando. E para me comprazer, claro. Deixando claro que esta é uma ínfima amostra do que pensava, sentia e como se colocava diante da vida esse monstro sagrado:

" Perguntei a Alfonso Reyes porque publicamos livros e ele respondeu que já se havia feito essa pergunta: - Compartilho dessa perplexidde, mas penso que cheguei a uma soluçāo: publicamos para nāo passar a vida corrigindo rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro, para livrar-se dele. "

"Naturalmnete, como todos os moços, tentei ser tāo infeliz quanto possivel - um tipo de Hamlet e Raskolnikov enrolados num só"

" Em 1924, entrei em dois grupos literários diferentes, Um, cuja lembrança ainda aprecio, era o de Guiraldes, que ainda estava por escrever Dom Segundo Sombra(....) O outro grupo, do qual me arrependo bastante, foi o da revista Martin Fierro. Eu detestava " Martín Fierro" por aquilo que representava, ou seja, a ideia francesa de que a literatura está continuamente em renovaçāo- que Adāo renasce a cada manhā."

" Recapitulando este período da minha vida, sinto uma completa antipatia pelo jovem pedante e muito dogmático que entāo era. Esses amigos, contudo, ainda se conservam muito vivos e pròximos para mim.Na verdade,formam uma parte preciosa de mim.A amizade, penso eu, é a única paixāo argentina redentora"

" Eu nāo sou , nem poderia ser um escritor latino americano.E nem sei até que ponto sou argentino."

" Suponho que minha melhor produçāo  está acabada. Isso me dá uma certa satisfaçāo e tranquilidade íntimas.E, contudo, nāo sinto que tenha esgotado minhas possibidades  de escrever. De algum modo, a juventude parece mais próxima de mim hoje do que quando era moço.Nāo mais considero a felicidade inatingível como há muito tempo atrás eu a considerava. Agora sei que ela pode acontecer a qualquer momento mas que nunca deveria ser buscada. Quanto ao fracasso ou à fama, sāo muito irrelevantes e nunca me preocupei com eles. O que estou procurando agora é minha paz, a alegria de pensar e da amizade e, embora possa ser demasiaa ambiçāo, uma sensaçāo de amar e ser amado."

" Um dia uma reporter disse a Borges: " o senhor é um gênio". Sorrindo ele respondeu: " Nāo creia, sāo calúnias."

" A cegueira, que nāo apenas  era comum entre os membros de sua família, mas também da entre os diretores da biblioteca (dois de seus antecessores eram cegos), inspiraria ao poeta um se seus mais belos poemas - Poema de los dones - onde fala da esplêndida ironia de Deus, que lhe doou ao mesmo tempo 800.000 livros e a cegueira, quando sua idéia de paraíso sempre foi uma visāo de biblioteca: " Ninguém rebaixe a lágrima ou se afoite/ A condenara a prova da mestria/ de Deus que, com magnífica ironia, Deu-me os livros e ao mesmo tempo a noite."

" Nāo existe nada na América Latina. É como se todo o continente fosse um romance mal escrito."

" Mas ele ainda iria surpreender: escolheria, como lugar para morrer e ser enterrado, Genebra, na Suíça e nāo sua terra natal como muitos podiam esperar Borges recusou-se a morrer como o outro, aquele que era um monumento argentino, o ser público dos jornalistas, dos escândalos, dos inúmeros amigos e condecorações, mas ele mesmo: que sonhava ser invisível: um viajante cosmopolita e antinacionalista, cuja única pátria foi a literatura."

Borges costumava dizer: " o mundo inteiro é um jogo de símbolos e todas as coisas significam outra coisa."  Deduz-se daí, a riqueza da sua obra.

Poderia seguir para sempre citando só pérolas de Borges e sempre me maravilhando como se fosse a primeira vez.
Asssociando essas pérolas com tudo de profundo, sofisticado, denso e tocante de sua obra que também é infinita. O curioso é que os temas sāo muito recorrentes, mas os significados.....meu Deus. Atrevo-me a dizer que se só existisse Borges no mundo como escritor, estaria de muito bom tamanho. Nāo passaríamos um dia sem ler.
As mesmas histórias, mas novas histórias, com novos conteúdos, originários de outras literaturas e relidas por outros leitores. Impossível definir o que é a  literatura dentro da literatura, com " fatos estéticos" como ele mesmo chamava, acontecendo o tempo todo. É preciso experimentar, entregar-se e viver a experiência praticamente lisérgica que é mergulhar no universo Borgeano.

Quero muito terminar mas nāo consigo. Eu tenho tanta admiraçāo pela pessoa e obra desse homem que sou raptada toda vez que começo a falar dele. E por onde fui tentar esvaziar minha estante! Pelo impossível!
É claro que Borges nāo sai. Vou pensar na hipótese de que fique apenas ele e alguns filósofos com os quais tenho mais afinidade.  Sim, mas e Proust? Já posso antever todo o sofrimento e as argumentações para que este também nāo se vá. Como ele também é enorme! Como ocupa um espaço gigante na minha vida!
Nem falo de Fernando Pessoa porque este, sendo eu mesma, nāo poderia deixar a casa. Uma cisāo dessa natureza ainda nāo está em cogitaçāo.
E entāo me pergunto: porque é mesmo que tenho que sofrer?






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