domingo, 16 de fevereiro de 2014

A grande beleza


Chego nesse minuto em casa, tomada de um sem número de sentimentos contraditórios depois  de ter assistido à Grande Beleza.

Eu, que precisamente tinha a intenção de escrever sobre a mesmice de tudo que tenho visto, ouvido e até lido, paguei caro. O filme em questão é, senão muito diferente do habitual,  uma mistura inusitada e maravilhosa de tudo que a gente já viu. O melhor que a gente já viu.

Não quero nem devo falar muito do filme por dois motivos: primeiro que todo mundo já viu – está quase saindo de cartaz, e segundo que não é minha especialidade.

A mim, se impõe comentar aspectos daqueles que me impactam muito. E esse, bem, ou escrevo ou não durmo nunca mais.

Fora todo o óbvio que está lá e é espetacular – a atuação do ator principal, a música, a fotografia, os diálogos maravilhosos entre engraçados, sarcásticos, ácidos e que não deixam pedra sobre pedra, as críticas bem humoradérrimas  sobre tudo – desde o narcisismo que tomou conta do mundo, o facebook,  as “artes conceituais”, as performances, o modern way of life, o vazio das relações, o todo mundo se achar autor, ator ou o que seja, a ilusão da vida vivida em eterna festa, a ilusão maior ainda de manter a juventude muito mais do que ela pode aguentar, as mentiras da igreja....Até a dieta Dukan está lá. Nada escapou a esses roteiristas maravilhosos e antenados. Isso tudo, fora os recursos para tornar a tentativa de uma geração de ser diferente, ainda mais "drogada": o que era aquela tela de cabeça para baixo? Genial.

E, como evidentemente tudo isso tem um preço, e alto, estão lá também as  angústias, os vazios, os suicídios, os medos, as covardias e toda sorte de sentimentos humanoss desglamourizados e que deve ser mantidos em segredo.

Última frase do filme: “no final de tudo é sempre a morte. Mas antes dela vem a vida, com todas as suas fragilidades, mentiras, medos e blá, blá , blá”. Prá mim o blá, blá, blá  é a melhor parte.

Voltando por um instante à beleza. Ela existe em muitas coisas – pessoas, natureza, obras, mas em geral passa e ilude.  Se se vive em uma cidade de beleza inesgotável como Roma, rodeado de obras de beleza sólida, profunda e atemporal, é muito fácil tornar-se um esteta exigente e procurar em cada móvel, quadro ou pessoa, a beleza pura e imaculada. A pietà por assim dizer.

Jep – o escritor de um livro só, buscava a beleza de gestos, de palavras, de posturas adequadas, e esperava que a grande beleza aparecesse em sua vida para continuar a escrever.

Enquanto isso, dava-se à liberdade de fazer-se acompanhar do que havia de mais feio, grotesco e fútil na sociedade romana. Jep foi vítima de sua estética primorosa. Nesse tudo ou nada, por 65 anos ficou com o nada.

Ironia. A tal beleza imaculada sempre esteve com ele. Mistura de beleza, amor e ingenuidade - porque tudo isso também é beleza, ali estava toda sua matéria prima escondida desde o primeiro amor. Nunca é tarde para descobrir. Que bom.

Mas não para aí a magia do filme. Aliás nem começa aí.
Desde o início, primeiras cenas mesmo, o espectador vê Fellini e o peito aperta. La Dolce Vita, Roma e Amarcord puxam a gente de volta para os anos 70.  Vê Bunnuel, vê Almodóvar, vê Wood Allen e as referências vão se seguindo de uma forma que a cabeça começa a dar voltas, e o passado invade  o presente, e de repente aparece Funny Ardant numa noite escura e você vê Truffaut com sua Funny sempre deslumbrante e já não sabe mais se tudo é proposital, se o blá blá blá é de agora e a verdadeira arte do cinema ficou pra trás; ou se é simples homenagem.

E eu queria tanto que eles estivessem vivos. Que dessem uma pista sobre que olhar teriam sobre nosso pobre mundo de agora.

Mas é inescapável. No fim sempre a morte. Antes dela, a vida e seu blá, blá, blá.

Ou não haveria motivo para nenhum dos mestres ter existido e nenhuma crítica ter sido jamais feita.

Estou quase concordando com Renato Russo: “mudaram as estações, nada mudou”.
Só na mais fina camada da superfície.

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