segunda-feira, 16 de abril de 2012

Diálogo


Veio um homem com cara de antiquíssimo sábio e me perguntou:
- Então, o que é que esta  vida te deu?
E eu, afundada no meio-fio do meio do vazio respondi:
- Nada que eu não pudesse ter conseguido sozinha.
O homem cofiou a barba, sentou ao meu lado, pegou minha mão e disse:
- Isso que tens na mão, terias conseguido sozinha?
- Ah isso não! Respondi. Isso eu nem queria.
Então, abandona esse buraco fundo! Enche a tua alma de tudo que te faz grande e anda!
O que te pesar deixa, mas sabendo onde enterraste teu tesouro.
- E o que devo carregar e deixar? Não sei do que estás falando.
- Sabes sim: carrega o que te faz feliz todos os dias: teus risos, esperanças, planos, amores de todos os tipos.
- Mas como deixo o que disseste que é tesouro?  Não sei o que é,  mas não me parece sensato.
 Deixa tua coragem, tua paz, tua fé, tua certeza no bom da vida, teu amor incondicional, tua verdade, tua luz.
- Mas não é disso que mais preciso?
- Sim, mas só da ideia e da certeza desses bens. Eles mesmos são etéreos. Saberes onde estão os plasmas e saberes que estão em segurança,  já bastará.
- Não entendo como me pode pesar aquilo que é etéreo e puro plasma.
- Pesa porque envaidece, porque garante, porque causa inveja e, por isso mesmo, produz o efeito contrário.  Quem carrega a ideia, cuida dela como um desenho de fumaça que pode se desfazer a qualquer momento. Quem carrega a forma se distrai, se sente seguro, e se perde na ilusão do poder infinito de a tudo refazer,  dominar e a todos seduzir.
Agora levanta que é tarde, ele disse. 
Segue e refaz o teu balanço. Hora dessas te encontro e o saldo da vida virá com nova contabilidade.
E assim como veio, sumiu.
Deixou-me só, olhando para minha mão paralisada. E alí tive a certeza de que estivemos sempre de acordo. Não pedi nada nem consegui nada sozinha.
A vida me deu o que me era devido. Todos os eventos que produziram o que me diria respeito e as lutas que eram minhas, foram cúmlices de jornada.
Até mesmo as palavras que amo: quem as manipulou fui eu. Elas nunca foram, nem de longe, tradutoras nem do bem nem do mal. Nem de Deus nem do Diabo. Elas são neutras como neutro é todo o universo e cada grão que há nele.
Levantei do meio-fio do espaço vazio, prendi os cabelos, arregacei as mangas, enchi a mochila com o que dava, enterrei com cuidado o original de tudo que fora combinado. Guardei na memória as ideias,  ergui os ombros, apertei os olhos. 
Respirei bem fundo, sorri e parti.
Reparei que há buracos fundos por toda parte e que aprender a esquivar-me era o segredo que aquele homem quis me ensinar. Se aprendi, não sei mas aquele diálogo mudou minha vida.
Quanto tempo isso faz?
Não tenho noção.
Talvez tenha sido há milhares de anos e só agora me esteja sendo dado lembrar.
Vá saber.



Um comentário:

  1. Claudia, esse texto me pegou num momento de extrema vulnerabilidade emocional. Li e reli várias vezes e ainda não sei se entendi tudo. Um dos textos mais densos e com inúmeras possibilidades de leitura que você já escreveu.
    A neutralidade que você atribui aos fatos e palavras, o esvaziamento dos conteúdos e consequencias, como argilas a serem moldadas, é uma imagem forte e perturbadora.
    Mas o que mais impactou foi o peso da leveza, do etereo. Preservar apenas a ideia e a certeza dos bens conflita com a segurança do tangível desses bens. Tenho dificuldade em absorver esse conceito, embora ele faça todo o sentido!
    Preciso pensar. Elaborar. Extremamente instigante.
    Bjs.

    Alice

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