terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A pele que habito


Só hoje fui ver “A pele que habito”.
Sempre que entra em cartaz um novo filme de Almodóvar, fico louca para assistir e vou na primeira leva. Por acaso com esse não foi assim e talvez tenha sido bom. Não fui ver um Almodóvar qualquer, guardeio-o como um tesouro para o início do ano para sentir coisas muito  diferentes do universo feminino colorido e triste. Claro que estou até agora pensando, capturada que fui pelo filme de terror de Almodóvar.
O filme é tenso, muito tenso, cria um enorme mal estar. É um filme de terror sem os gritos  e sustos do gênero. Mas para mim vai além. Acho que deve ser a tensão de habitar a pele errada. Deve ser muito tenso. Penso que todos nós devemos nos perguntar, quando não estamos bem, onde é que a pele não está de acordo com a alma.
Também não sei se o nome Vicente foi proposital numa referência a Vincent Van Gogh, outro que não suportou a própria pele e teve que terminar com a vida.
Que possibilidades terá o Vicente do filme? Na minha opinião nenhuma. Só a morte. Como de resto, nenhuma possibilidade teve a ex-mulher que, ao ver seu reflexo queimada, não viu alternativa senão atirar-se pela janela.
Ter um interior intacto, não basta: a pele tem que ajustar-se.
Ter a pele perfeita não garante identidade: o interior deve dar seu “de acordo”.
A primeira frase do filme já nos mostra o equívoco do cirurgião inescrupuloso, acostumado a lidar com peles que as pessoas provavelmente lhe pediam para ajustar à suas almas: “não basta salvar a vida de um queimado. É preciso lhe dar um rosto. O rosto é o que nos define”.
Foi por falta desse rosto que viu sua mulher saltar para a morte e, depois, quando se viu tomado pelo ódio por Vicente (o rapaz a quem ele atribuiu a culpa pela morte de sua filha), tratou de usá-lo para reconstruir sua mulher com a pele perfeita que não queima e não sente dor, mas também (vingança suprema) dar-lhe um invólocro incompatível que, ele sabia, seria intolerável - ou não sabia, louco que era.
Ódios tornam-se amores, o criador esquece-se da alma da criatura e se apaixona pela pele que construiu - leia-se rosto e corpo da ex-mulher.  Na minha opinião, o cirurgião nem sabe que pele lhe serve mais – perdera a mulher  para a falta de rosto, e a filha para a falta de alma. Testemunhar o salto e a figura da mãe – sabendo que homens podem produzir aquilo (o incêndio com o Tigre), tirou da menina qualquer possibilidade de confiança e afeto pelo ser humano.
Robert é um homem aprisionado em sua própria pele e alma - ou nem uma coisa nem outra, um homem que desconhece seus limites e "onde habita",   com a arrogância de um Deus que pretende dar e tirar peles transgênicas a qualquer preço, e cujos castigos e vinganças que conhece, passam por essa manipulação. Fazer a barba de Vicente é uma amostra do quanto "lidar" com peles lhe dá prazer.
O filme é trágico. Muito trágico. Pessoas comuns impulsionadas para a morte por acasos que aparentemente não deveriam pertencer a suas vidas. Pessoas incapacitadas de lidar com seu dentro x fora.  
A incompatibilidade dos  dois parece que não deixa saída. Ou há e Almodóvar não vê? O que dizer do Fantasma da Ópera, do Corcunda de Notre Dame, do Homem Elefante? E do mundo de almas atormentadas de artistas, intelectuais e pessoas comuns que nem por isso só vêem a morte como solução? 
Ou sou eu que não vi ainda uma "segunda pele" no filme e sim, Vicente vai achar um jeito de viver com sua nova pele? 
Não acho que haja resposta.
Para mim, fica a pergunta: o que, de fato, nos define? O filme é uma história de terror gratuita ou quer nos fazer pensar?
Sou obrigada a confessar que mais uma vez abriu-se a temporada Almodóvar. Toda vez que assisto a um filme novo, morro de saudade dos anteriores e os re-vejo quase todos em seguida. 
Não vai e ser diferente dessa vez. amanhã começo a alugar os filmes antigos e terei um delicioso mês de janeiro recheado de Almodóvar.
A Pele que Habito permanecerá em minha cabeça por muito tempo. Provavelmente chegarei a muitas conclusões, sozinha ou com a ajuda dos amigos, mas para mim foi dos melhores filmes dos últimos tempos.

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